As Quatro Estações de Aurora

É inverno. De dentro de seu pequeno apartamento, Aurora avista os carros passando. Ela também precisa sair de casa. Xícara de café amargo na mão direita, olhar perdido…também perde a hora, mas precisa voltar ao trabalho. Vontade, entusiasmo, alegria?! Nada! Apenas a necessidade de pagar as contas no fim do mês. Vira o rosto. Em cima da mesa, contas acumulam-se. Já nem o salário a entusiasma desde que se tornou insuficiente para seu próprio sustento. Sua vida está cinza como o céu.

O ambiente de trabalho é pleno de intrigas, fofocas. Aurora não quer falar de si nem dos outros. O chefe é uma pessoa tão distante quanto os carros que ela avista da janela, sem nenhuma oportunidade de frear. Aliás, ele não pára nem no sinal vermelho. É um homem de ação e pouca conversa. Sente que falar é perder tempo no agir. Aliás, tempo é dinheiro! Ele repete essa frase para si e para quem o cobrar atenção.

Tudo que Aurora queria hoje era não ter compromisso nenhum, mas ela também tem um filho para sustentar. Enquanto vivia com o marido, ela ainda podia contar com sua ajuda, embora ele ganhasse pouco nos trabalhos que pegava de vez em quando. Desde que ele partiu, a cooperação financeira derreteu-se como a neve formada na vidraça.

Mas Aurora precisa ir ao trabalho. Vestida de cinza, para fingir inexistência, ela fecha a porta de casa e entra direto na sala do chefe.

_ Acabou, diz Aurora. Não posso continuar aqui.
_ Como assim? Você ainda tem trabalhos para finalizar. Para quem eu passaria os projetos que estão sob sua responsabilidade? Vou perder tempo procurando uma substituta. Sabe que não pode sair sem aviso prévio?

Aurora virou as costas e saiu da sala. Do lado de fora, tinha sol, guarda-sol e uma chuva fina inclinada para a direita. Foi suficiente para Aurora molhar-se e sentir-se como criança disposta a brincar com tudo.

Já que não tinha nada a perder, foi tomar sorvete de pistache com calda de caramelo. Avistou um anúncio: “Procura-se vendedor”. Mas ela não queria vender sorvetes, só lambuzar a boca por alguns minutos para lembrar-se do que gostava. E, então, ela se lembrou de que gostava de sorrir, de brincar de boneca, de comer pipoca doce, algodão-doce e amendoim; de que teve uma professora chamada Sueli; de que era especial; de que, antes de ficar grávida, ela havia se apaixonado por um rapaz que foi embora da cidade em busca de avanços na carreira. Ela se lembrou de que sempre quis fazer um curso de jornalismo, mas teve medo de não ser bem remunerada. Por medo de faltar dinheiro, optou por um trabalho estável, mas, assim, começou a ser infeliz.

Sua infelicidade afastou dois homens que lhe amaram de verdade: Pablo, seu grande amor adolescente, e Henrique, que lhe proporcionara a realização de qualquer sonho. Esses sonhos foram-se com o vento e ela só tinha um resto de casquinha para saborear. Por isso, permaneceu um pouco mais em suas divagações, pensando no tempo perdido, em busca de onde foi exatamente que ela se permitiu deixar de ser feliz.

A chuva passou e um arco-íris surgiu no céu, formando um lindo portal. Aurora levantou-se, pagou as duas bolas de sorvete e caminhou em direção a um cyber café, onde, do outro lado da rua, encontraria seu sonho. Lá pesquisou todas as universidades de jornalismo, identificou as que poderia cursar e, depois de algumas estações, ela conseguiu a vaga, a bolsa de estudo e até um emprego na faculdade, onde conheceu uma terceira pessoa que ela conseguiu amar, porque já se amava… e já sabia o que desejava mais do que tudo em sua vida.

É inverno. De dentro de seu pequeno apartamento, Aurora avista os carros passando. Ela também precisa sair de casa. Xícara de café amargo na mão direita, olhar perdido…também perde a hora, mas precisa voltar ao trabalho. Vontade, entusiasmo, alegria, saudade de fazer aquilo que se faz todos os dias, com tanto prazer!

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0 comentário em “As Quatro Estações de Aurora

  • Adriana,
    Parece-me que a mensagem que nos fica é a de que nunca você pode deixar de pensar por mais que a situação seja anverso a que realmente você gostaria que fosse.
    Buscar a felicidade interna nem sempre as “estações” estão favoráveis. Portanto, o desafio é a buscar o equilíbrio, primeiro, com você mesmo.
    Abraços,
    Djailson.

  • Obrigada, Djailson, por sua visita e seu comentário bastante pertinente. A proposta era provocar algumas reflexões. Você teve uma excelente percepção e apostou no encontro da felicidade e equilíbrio interior. Tem mais “valores em charadas na crônica”, mas sua primeira sensação foi coerente com suas buscas. Lindo! Parabéns!

    Volte sempre. Eu também sinto falta de nossas conversas.

  • Adriana,
    Que texto lindo, quanta similaridade com nossas estações interiores, buscamos sempre uma estabilidade financeira, um emprego que nos proporcione o sustento, e nos acomodamos com a tal estabilidade, por medo, simplesmente por medo, medo de mudar, de não dar conta, de errar, e a vida passa, buscamos também felicidades , realizar sonhos começa dentro de nós, como você me disse um dia, planeje seus sonhos, e estou tentando, esboçando, descobrindo o que realmente quero. Porque muitos sonhos se foram, outros tantos estão emaranhados, quantas oportunidades não percebidas, porque estava simplesmente passando pela vida, e a vida passa, e os sonhos se vão, mas a busca pela felicidade continua.
    Beijos no coração.

  • Minha querida,
    Fico muito feliz por sua garra em rever posicionamentos e crescer, mesmo que um pouquinho a cada dia. Admiro muito sua energia e tanto alto astral. Sua vida é sempre um verão!!!
    Beijos com saudade.

  • Eu li mais uma vez este lindo texto antes de escrever o meu comentário, pois não foi muito facíl pra mim identificar-me em Aurora. Jamais encontrou-me na condição económica precária, sem entusiasmo de trabalhar e para além disso, sozinho com um filho para sustentar. Ao contrário eu também tive chefes e ambiente de trabalho semelhantes àquele que tinha Aurora: é uma coisa bastante normal hoje em dia. Todavia a vida não foi sempre facíl, e mais uma vez pensei em mudar tudo. Eu tive a coragem de mudar cidade e trabalho bem pensando nas consequências para seguir os meus sonhos. Ainda eu acredito na mudança, sobretudo naquela interior que é a condição básica para encarar o futuro. A mudança, no meu parecer, tem que ser corajosa mas bem pensada também. Ela é importante pelo trabalho, mas mesmo na vida. Eu desejo, sempre que possa, sugerir dois livrinhos que tratam os vários aspectos da mudança. Não sei se existe a tradução na lingua portuguesa, mas os seus títulos são : “ Chi ha spostato il mio formaggio “ ( Quem deslocou o meu queijo ) escrito pelo autor Spencer Johnson, e “ Il nostro iceberg si sta sciogliendo” ( O nosso icebergue está se derretendo ) escrito pelo autor John Kotter. Ambos parecem duas fábulas mas com um profundo conteúdo que ensina nos a enfrentar a vida. Adriana, gostei muito deste texto e a frase que prefiro é a seguinte – …. Foi suficiente para Aurora molhar-se e sentir-se como criança disposta a brincar com tudo….. – Isso é pra mim o sentimento de quem enfrenta uma mudança. Desejo expressar toda a minha admiração pelo seu Blog.
    Daniele

  • Querida,
    independente da realidade de cada um, o texto faz refletir na busca interior pela felicidade. Rever conceitos e lutar por aquilo que seu ser mais se identifica. Que cada um consiga ser FELIZ! Equilíbrio e Harmonia.

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