A Fiat fundada em 1899, foi uma empresa que revolucionou não apenas o mercado automobilístico, mas também a cidade de Turim, na Itália. Mais do que uma fabricante de automóveis, a Fiat foi um exemplo de como uma organização pode criar uma cultura empresarial que integra pessoas de diferentes regiões, transformando-as em membros de uma grande “família organizacional.”
Embora o sentimento de pertencimento tenha sido cuidadosamente cultivado pelos gestores da empresa, o planejamento para o encerramento de suas atividades não foi realizado de forma adequada. Muitos colaboradores se sentiram desamparados, desvalorizados e, em alguns casos, enfrentaram crises emocionais e momentos de profunda depressão.
Para entender melhor esse momento histórico e seu impacto, entrevistamos Antonio Soldano, engenheiro mecânico que dedicou toda a sua carreira à Fiat e testemunhou de perto essa transição. A entrevista foi conduzida em Turim, em outubro, no apartamento do entrevistado.
Qual foi o seu cargo na Fiat?
Formado em engenharia mecânica, trabalhei por 44 anos na Fiat, chegando até o cargo de Sight Manager, i.e., coordenador de fábrica.
O que te trouxe a trabalhar na Fiat?
Na época, estavam contratando, então apresentei meu currículo e entrei como funcionário júnior. Dirigia a empilhadeira e transportava peças que o montador colocava sobre o veículo.
Você veio de que área da Itália?
Sou da Puglia, nasci em Foggia. Minha trajetória na Fiat começou por incentivo do meu pai, que sempre valorizou a estabilidade que a empresa oferecia naquela época. Trabalhar na Fiat era considerado um emprego seguro, com a garantia de crescimento e benefícios, como a facilidade para obter crédito em bancos. No entanto, com as mudanças ao longo dos anos, a Fiat perdeu essa segurança e estabilidade; deixou de ser estatal e a estrutura de trabalho mudou profundamente. A empresa que conhecíamos antes, de fato, não existe mais.
Como era a sua sensação de ser um profissional do Sul trabalhando no Norte?
Eu nasci na Puglia, mas fui criado aqui em Turim. Meu pai veio do Sul para trabalhar na Fiat, então não tive um choque cultural, já morava aqui desde pequeno. Meu pai era agricultor no Sul, e a situação lá era difícil, ele estava passando por muita necessidade. Foi o meu tio que o chamou para vir trabalhar na Fiat, e isso mudou completamente a vida da nossa família. Primeiro veio só ele, e ficou morando com meu tio por um ano, até conseguir alugar um apartamento com banheiro comunitário. Depois minha mãe veio e começou a trabalhar na Fiat também.
A vida era muito simples. No apartamento onde morávamos, o banheiro era comunitário, compartilhado por cerca de 10 a 15 famílias, e não tinha chuveiro. Nós três — eu, meu pai e meu irmão — tomávamos banho uma vez por semana em um local público, enquanto minha mãe usava uma bacia grande em casa aos sábados. Mais tarde, mudamos para um apartamento onde meu pai construiu um banheiro sem janela. Mesmo assim, precisávamos economizar água: aos sábados, enchíamos a bacia, e cada um de nós usava a mesma água, na ordem: minha mãe, depois meu irmão, eu e, por fim, meu pai. Isso não ocorria só com a minha família; a maior parte dos imigrantes também vivia assim.
A minha família precisava de dinheiro. Precisei trabalhar aos 11 anos em uma feira, pois mesmo não sendo remunerado, ganhava comida. Aos 14, deixei de frequentar a escola para ir trabalhar como mecânico, consertando os radiadores dos carros. Aos 20 anos, entrei na Fiat como operário, dirigindo a empilhadeira para transportar peças. Mais tarde, compreendi a importância de continuar a estudar e passei a frequentar aulas noturnas, o que me ajudou a crescer dentro da empresa.
O que a Fiat fez para ajudar na adaptação dos colaboradores?
Na época, a Fiat fazia muito pelos funcionários; não apenas oferecia trabalho, mas também melhorava a qualidade de vida dos colaboradores ao promover o crescimento das comunidades ao seu redor.
Construiu fábricas como as de Mirafiori e Lingotto, formou a cidade de Piossasco e desenvolveu bairros como Falchera e Le Valette. Nesses bairros, houve um agrupamento natural de comunidades formadas por trabalhadores que vieram de diferentes regiões do Sul da Itália. Os sicilianos, por exemplo, viviam no Borgo Vittoria, enquanto que a Falchera era conhecida como o bairro dos calabreses.
Você via a Fiat como uma família?
Claro que sim, eu via a Fiat como uma família, e ainda choro por não fazer mais parte dela. No dia em que a Stellantis me demitiu de forma forçada, fiquei chocado; eu costumava tomar café aos domingos com a equipe e sacrifiquei minha vida pela Fiat, mas depois me senti não reconhecido. A lei me permitia trabalhar na Stellantis, mas, mesmo assim, fui obrigado a ir embora.
Você participou da história da Fiat, o que foi mais marcante?
A coisa mais marcante que lembro foi a transformação da Fiat nos anos 90, quando passamos de fábricas normais para fábricas integradas. Naquela época, a empresa era muito hierárquica, quase militar; você quase nunca encontrava o diretor e tremia ao precisar se dirigir a ele. Havia uma estrutura extremamente verticalizada, com operários simples formando equipes de cerca de 40 pessoas, operadores, e uma cadeia de comando que incluía o chefe dos operários simples, o chefe de seção, o vice-chefe de oficina, o chefe de oficina e o diretor.
Os símbolos de reconhecimento eram evidentes, como o casaco preto e a medalha vermelha que o chefe da equipe usava. Com a mudança para a fábrica integrada, todos deviam ter o mesmo uniforme, desde os funcionários da linha de montagem até aqueles que interagiam com o governo. Pessoalmente, não considerei essa mudança positiva, pois antes tínhamos mais segurança; na nova estrutura, éramos todos chamados pelo nome, e os escritórios foram eliminados, criando espaços abertos onde ninguém, nem mesmo o diretor, tinha sua própria escrivaninha.
Como você percebeu as mudanças de liderança na Fiat?
A família Agnelli e Sergio Marchionne sempre cuidaram da Fiat, com o desejo de que a empresa continuasse a operar na Itália. Após a morte de Giovanni Agnelli e, posteriormente, de Marchionne, a Fiat adquiriu a Chrysler e se tornou a FCA, ainda sob a liderança de Marchionne. Durante esse período, a Renault tentou comprar a Fiat, mas Marchionne rejeitou a proposta. No entanto, John Elkann, o neto herdeiro, não demonstrou interesse em manter a Fiat e decidiu vendê-la para a PSA (Peugeot), que buscava entrar no mercado sul-americano.
Essa mudança de direção teve consequências significativas, pois todas as fábricas em Turim, como Drosso, Mirafiori e Lingotto, foram fechadas, restando apenas as fábricas no Sul, que não podem ser encerradas por questões legais. Como resultado, a escala de produção nacional tornou-se muito baixa. É importante notar que, apesar de a Fiat sempre ter sido uma empresa de propriedade privada, ela contou com apoio governamental ao longo de sua história. O Estado forneceu recursos para que a Fiat construísse fábricas também no Sul, ajudando a manter a população em suas regiões de origem, com a abertura de unidades em Melfi, na Basilicata; em Cassino, no Lazio; e em Pomigliano, na Campânia.
Como foi para você, ver o fim dessa história na qual você participou?
Estou triste com essa situação, pois já estou aposentado há dois anos, uma decisão que me foi imposta através de assédio moral. Não quis me aposentar, mas fui incentivado de forma negativa, criando um ambiente de medo em relação à demissão. Estou desiludido por ter dedicado tantos anos à empresa e queria ter saído de forma mais digna, com uma celebração ou um presente, em vez de ser mandado embora de maneira abrupta e humilhante.
Sentia que vivia em uma família, com meu chefe e colegas que me conheciam bem, mas foi o departamento de recursos humanos, que nem me conhecia, que tomou a decisão de me demitir. Ninguém queria que isso acontecesse, mas meu chefe não queria entrar em conflito com o RH, que estava mais preocupado em economizar. Infelizmente, a função do RH, com a chegada da PSA, tornou-se a de demitir funcionários e cortar custos. Em 44 anos de trabalho, todos nós tínhamos medo do RH, que nos intimidava, e o indicador de performance era baseado em quantos funcionários conseguiam ser demitidos. O RH parecia estar estressando a equipe, buscando se livrar do maior número possível de colaboradores.
Isso se torna um problema para o governo, pois agora sou considerado um peso. Havia uma manipulação para que eu me aposentasse rapidamente, com a promessa de que “você vai ser um homem livre.” É difícil passar 6 ou 7 horas por dia sentado sem fazer nada, e eu não queria abrir mão do meu trabalho, pois sabia que tinha valor. Por isso, tentei buscar uma mediação e propus que me pagassem para sair. Inicialmente, não aceitaram, mas depois chegamos a um acordo financeiro, que, na verdade, não me traz satisfação. O que eu realmente queria era continuar lá. Eles convencem todos a se aposentarem, mesmo que faltassem ainda 5 anos para a aposentadoria legal.
Emocionados e tocados com a história de Antonio Soldano encerramos a entrevista. Ele nos fez refletir não apenas sobre a Fiat, a cultura organizacional, ou a cultura sobre o Norte e Sul do país, mas também sobre a vida dos imigrantes do Sul, do orgulho de pertencer a uma organização respeitada e a um fim triste e humilhante para quem se sacrificou para construir um império.
Com emoção e profunda reflexão, encerramos a entrevista com Antonio Soldano. Suas palavras nos levaram a pensar não apenas sobre a Fiat e sua cultura organizacional, ou sobre as dinâmicas culturais entre o Norte e o Sul da Itália, mas também sobre a vida dos imigrantes do Sul. Ele compartilhou o orgulho de pertencer a uma organização respeitada e o impacto de um desfecho triste e desmoralizante para aqueles que se sacrificaram na construção de um império.