2011 foi um ano de protestos. No Oriente Médio e na África Setentrional, houve uma série de manifestações por liberdade e justiça, na chamada Primavera Árabe. Já em Nova Iorque, os americanos se voltaram contra a hegemonia global dos grandes bancos e das multinacionais, num movimento conhecido como Occupy Wall Street.
O lema da manifestação, “We are the 99%”, tornou-se um símbolo mundial da desigualdade. O slogan sintetizava uma constatação dos economistas Thomas Piketty e Emmanuel Saez. Entre os anos 1970 e 2010, a participação do 1% mais rico na renda nacional dos Estados Unidos triplicou.

A discussão ganhou visibilidade com o artigo “Of the 1%, by the 1%, for the 1%”, publicado na revista Vanity Fair pelo economista Joseph Stiglitz. Desde então, a expressão “1%” passou a ser amplamente utilizada em debates econômicos e sociais para se referir à concentração de renda e patrimônio em uma parcela reduzida da população.
Esse dado não se restringe ao capital financeiro: ele reflete também quem tem acesso a tempo, informação e eficiência institucional — recursos invisíveis, mas decisivos na vida cotidiana.
Quem nunca chegou a uma repartição pública e encontrou as portas fechadas? Para muitos cidadãos, regras como o atendimento apenas online, o agendamento obrigatório ou o uso de formulários digitais acabam se tornando barreiras para quem não tem tempo, familiaridade tecnológica ou conexão estável.
De acordo com dados do Eurobarômetro, 56% dos italianos lamenta a lentidão dos procedimentos administrativos. Ademais, segundo a Comissão Europeia, mais de 40% dos europeus carece de habilidades digitais para a gestão de procedimentos administrativos pela Internet. Pagar a conta de luz, fazer um agendamento ou uma transferência bancária, se inscrever num curso, comprar um bilhete de trem – a digitalização facilitou a vida de alguns. Para muitos, é uma barreira.
Segundo a professora Alba Nogueira López, da Universidade de Santiago de Compostela, a administração pública deve ser mais inclusiva. O cidadão comum enfrenta o peso do tempo: filas, formulários, respostas que nunca chegam. Esse tempo perdido tem um custo econômico mensurável. O Banco Mundial estima que a ineficiência administrativa pode reduzir em até 1,5% o PIB anual de países de renda média, devido ao desperdício de horas produtivas e à erosão da confiança institucional.
Mas há um custo invisível ainda maior — o cansaço moral de quem desiste de reivindicar direitos ou de acreditar que pode ser ouvido. Quando a gestão pública deixa de servir ao cidadão e passa a servir a si mesma, ela se transforma de instrumento em obstáculo.
O que seria, então, uma administração para os 99%?
Trata-se de um modelo que reconhece que eficiência e equidade não são objetivos opostos, mas complementares. Implica uma mudança de paradigma: em vez de perguntar “como acelerar processos”, perguntar “para quem eles são acessíveis?”.
Esse modelo exige:
- Transparência radical — processos compreensíveis e dados abertos, para que o cidadão não dependa de intermediários.
- Design institucional centrado no usuário — inspirado em abordagens de service design e behavioral insights, como o nudge, que buscam reduzir barreiras cognitivas e administrativas.
- Governança inclusiva, que envolva usuários, servidores e especialistas na co-criação de políticas e serviços.
Essas não são ideias utópicas. Países como Estônia e Dinamarca demonstram que digitalização com empatia e autonomia administrativa descentralizada podem reduzir custos e desigualdades simultaneamente. No Brasil, iniciativas de simplificação de serviços e uso de dados comportamentais — como o programa Poupatempo em São Paulo ou o gov.br em âmbito federal — mostram resultados positivos, ainda que heterogêneos.
Recuperar a alma (e o propósito) da administração
Chamar isso de “administração com alma” não é um gesto poético, mas uma constatação técnica: sem empatia, a eficiência se torna autorreferencial.
A gestão sem propósito perde legitimidade. E, quando isso ocorre, a obediência cede lugar à indiferença — uma das formas mais perigosas de erosão institucional.
Repensar a administração para os 99% é, portanto, um imperativo ético e estratégico. Significa reconhecer que governar, gerir ou liderar é distribuir tempo, atenção e dignidade, não apenas recursos.
O verdadeiro desafio da administração contemporânea é este: reconciliar o número com o rosto, o processo com a experiência, a regra com o sentido. Porque no fim das contas, nenhuma estrutura sobrevive se não servir àqueles que a sustentam.
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